domingo, 24 de fevereiro de 2019

Meritogracinha

    Já fui um homem sem nada, já fui um que teve de tudo, posso dizer que, de todos os momentos na vida de um homem, a pior é o que ele tem tudo e perde. É nesse momento que enxergamos quem esteve conosco esse tempo todo.
    Deixe eu me apresentar. Meu nome é Pedro Cardozo, que nem o ator, só que com "z". Sou um cara simples, tive uma infância dura, morava no interior do estado com a minha mãe, Dona Iracy, pai desaparecido, mamãe não conseguia mais andar e a situação estava apertada, arranjei pelo jornal um emprego de meio turno, num desses escritórios de seguros da cidade. Me lembro bem do desânimo que se instaurou quando percebi que teria que ir para escola, voltar para casa, servir o almoço de mamãe, pegar o ônibus, seguir para o escritório, trabalhar, ônibus novamente, cama... não parecia muito a vida que eu, criança idealizadora, queria ter, mas sabia que passaria por isso, era filho de Dona Iracy, afinal, e não tinha uma pessoa naquela rua que não tivesse ouvido minha mãe dizer, entre um trago e outro dos cigarros de palha que costumava fumar, "o trabalho, meu filho, o trabalho dignifica o homem".
    Então eu fui. No primeiro dia eu estava tão nervoso que minhas mãos tremiam como galhos numa ventania, parei na frente do endereço passado por telefone, era um pequeno prédio de três andares espremido entre um açougue com forte cheiro de peixe e uma pequena distribuidora de doces. Olhei pela porta vazada e só vi um corredor com uma escada para cima, sem portaria, suspirei fundo para controlar o nervosismo e toquei o interfone, temendo ter tocado forte demais, e se eles pensassem que eu era nervoso demais? Esperei algum tempo, mas não teve resposta, então toquei novamente. Nada. Tentei mais três toquinhos, já começando a pensar que aquilo era algum tipo de pegadinha e o emprego nem existia, quando ouvi uma voz feminina e fiquei confuso, porque não vi ninguém.
- Ei, garoto, aqui em cima!
    Tive que dar alguns passos para trás para conseguir enxergar a janela do primeiro andar, onde uma moça não muito mais velha do que eu gesticulava animadamente.
- O interfone está ruim! Aperta de novo lá que eu vou liberar para você!
    Fiz o que ela mandou e a porta abriu com um "click". Subi as escadas mais nervoso do que quando cheguei, veja bem, não é sempre que eu conversava com meninas bonitas e ali era o último lugar que eu pensava que fosse encontrar uma, tinha medo de gaguejar, suar, ou pior, perder a chance do emprego! Quando ela abriu a porta, loura, sorridente, com um casaquinho rosa que com certeza não tinha sido fabricado na cidade, eu fui o mais profissional que consegui, engoli saliva fortemente e balbuciei algo como "oi, anh... entrevista".
- Pedro, não é? - Ela folheou uma pranchetinha, fazendo um gesto com as mãos para que eu entrasse logo depois dela. O ambiente era frio, ar-condicionado ligado no último, e por dentro parecia bem maior do que por fora. Tinha pelo menos umas quinze pessoas, cada uma com a sua cabine, e ninguém parecia prestar muita atenção em mim, estavam conversando entre si ou usando um fone de ouvido estranho na cabeça. A loura voltou a falar comigo. - Meu nome é Shar. Nossa chefe, Dona Olívia, não tá, e o Seu Plínio, que é marido dela, também não, eu ouvi dizer que eles vão passar o resto da semana no litoral fazendo planos conjugais, mas não sei bem, foi Marlene que me contou e todo mundo sabe que Marlene não é a fonte mais confiável do mundo.
    Ela fitou os olhos castanhos em mim esperando uma resposta e eu fiz que sim com a cabeça, meio atordoado. Não entendia como ela conseguia falar tão rápido sem cuspir o chiclete. Fui seguindo atrás de Shar até uma cabine empoeirada.
- Essa daqui era do Fabão. - Ela apontou um cara careca e bigodudo em um retrato colado na parede da cabine. - Você pode ficar com ela, ele não volta mais.
- Foi demitido? - Consegui perguntar, aproveitando qualquer gancho de conversa possível para fazer a menina ouvir minha voz.
- Não, morreu. - Ela deu de ombros. - As pessoas costumam trabalhar aqui a vida inteira.
    Como se um furacão tivesse entrado na sala, uma mulher ruiva com seus lá cinquenta anos abriu a porta, lançando frases motivacionais tão bem como faria um militar. Ela alcançou Shar com o olhar e veio marchando em nossa direção.
- Sharlene, preciso que me envie os documentos dos Vital e ligue para Marilda, diga que odiei a nova cor e quero voltar para a antiga, mas que ela vai ter que me dar um desconto nisso tudo aí. - Finalmente ela pareceu meu perceber. - Você é Pedro? Minha sala, agora, vou te falar um pouco da SegurosLife. - E saiu, tão repentinamente como entrou. Shar me empurrou levemente em direção a sala da mulher e eu entrei, fechando a porta atrás de mim.
    Dona Olívia me mandou sentar e passou um sermão sobre os valores da empresa, sobre como eram todos uma família, sobre vestir a camisa da empresa, eu fiquei deslumbrado. Nunca havia sido parte de algo, e o jeito que eles pareciam tão unidos me trouxe pontinhas de inveja, eu também queria aquilo. Quando voltei pra casa e disse pra mamãe como fora, vi lágrimas nos olhos dela.
    Em pouco tempo a escola se tornou a obrigação e o trabalho um lazer. Digo, claro que nem sempre era legal atender os possíveis clientes e lidar com os documentos dos seguros, mas, como sugeriu Dona Olívia, eu vesti a camisa da empresa. Peguei rápido minhas funções, batia as metas em tempo recorde, sempre jogando limpo. Seu Plínio, que fui conhecer só um tempo depois, dizia que ninguém fazia um café bom como o meu, e o casal parecia querer me adotar toda vez que eu ficava além do horário em uma sexta-feira ou até sábado. Eu não ganhava muito dinheiro, mas ganhava o suficiente para bancar as contas de casa e, de quebra, poder levar algum docinho da distribuidora vizinha para mamãe, não podia reclamar.
    Um dia, depois de uns três anos de empresa, Seu Plínio nos apresentou seu filho.
- Pessoal, Junior voltou do intercâmbio e agora vai trabalhar conosco, sejam legais com ele, ensinem o que tem que ser feito. - Meu chefe virou os óculos para mim. - Pedro, você vai ser responsável por Junior.
    O rapaz deu de ombros e puxou uma cadeira para o meu lado, colocando o headset nos cabelos compridos que faziam com que parecesse um surfista. A cabine ficava apertada, mas eu não me importei, Junior era divertido, cheio de histórias de fora e eu acabava dando muita risada. Só tivemos um momento meio desconfortável, quando Shar apareceu pelo corredor, indo para a sala de Dona Olívia, Junior soltou um "gostosa".
- Cara, namoramos há um ano. - Eu franzi as sobrancelhas, meio incomodado, e ele sorriu, "desculpa, cara".
    Quando a minha mãe morreu, vendi nossa casa e comprei uma menor, mas bem mais próxima à empresa, nessa altura Shar já estava grávida e planejávamos que ela viesse morar comigo em breve. Ela andava mal-humorada, tinha enjoos matinais sempre e várias das roupas que gostava já não cabiam mais, mas continuava linda para mim, a melhor coisa que meu emprego me trouxera, ou talvez a segunda melhor, já que minha futura filha estava chegando. Eu já a amava mesmo sem conhecê-la e, se dependesse de mim, seguiria os passos dos pais, até que um dia a nossa família Cardozo estivesse na presidência da SegurosLife.
    Quando minha filha nasceu, eu quis registrá-la como Iracy, nome da minha mãe, mas Shar não deixou. Bateu o pé e insistiu para que fosse Olívia, como nossa chefe, e a devoção dela de certa forma me emocionou, Olívia ficou.
    Só que algo parecia estranho. Junior era muito meu amigo, foi inclusive padrinho do meu casamento, mas a frequência de suas visitas depois do nascimento da minha filha estava começando a me deixar encucado. Quando questionei Shar ela disse que era coisa da minha cabeça e desconversou, mas vi que ficou estranha. No dia seguinte, quando acordei, nem Shar e nem Olívia estavam em casa, mas não me desesperei. As vezes minha filha acordava a mãe de madrugada e Shar a levava no café 24h aqui da frente, então me arrumei e fui para o serviço. Quando abri a porta, Dona Olívia estava com os olhos vermelhos e inchados e Seu Plínio parecia desconcertado. Ela me abraçou.
- Ó, Pedro, eu sinto muito! Eu sabia que aquela menina era problema, eu sabia! - Lágrimas corriam pelos seus olhos e eu me senti como no primeiro dia de emprego, sem entender nada. - Ele voltou para a Califórnia, Pedro!
    De forma séria, Seu Plínio me levou até a minha cabine e puxou uma chorosa Dona Olívia de volta para sua sala, onde ficaram a tarde inteira fechados. Me concentrei no meu trabalho, ignorando os fatos se chocando contra a minha mente. Tudo bem que Junior pudesse ser meu melhor amigo, padrinho de casamento e também amante da minha mulher, tudo bem que a minha filha fosse, na realidade, filha dele, e isso explicasse a insistência em não pôr o nome da minha mãe, estava tudo bem, refleti enquanto mordia a bunda de um lápis com força. Pelo menos eu tinha o meu emprego, meu único emprego, meu ganha-pão. E é por isso que eu digo, depois de ser um homem sem nada, um homem que tinha tudo e um homem que tinha tudo e voltou a não ter nada: nesse momento enxergamos quem esteve conosco esse tempo todo. Graças ao meu trabalho, eu ainda tinha uma casa, eu ainda tinha comida na mesa, eu mantenho a chance de ser mais do que fui, de subir, encarar a chefia, talvez um dia fazer dos meus próprios filhos presidentes daquele lugar.
- Pedro. - Seu Plínio chamou da sala dele, e eu entrei, sentando na cadeira indicada. - Assine esses papéis, por favor. Junior determinou que só volta para o Brasil se puder criar sua filha aqui, e isso seria desconfortável com você por perto, eu sinto muito, mas preciso que o futuro presidente da minha empresa esteja aqui quando eu partir. Você está demitido.






sábado, 23 de fevereiro de 2019

Criando algo clichê e meloso sem ligar pra auto-crítica

    O primeiro ponto a se considerar é que nossas famílias se odiavam. Somos vizinhos e, depois de uns vinte e cinco anos anos compartilhando o mesmo corredor em um prédio pequeno e fuleiro de subúrbio, não é difícil começar a gerir sentimentos conflituantes. Afinal, é uma espécie de intimidade. Quando eu tinha catorze anos gostava de brincar de adivinhar quem da família dele estava usando o banheiro, era fácil porque todas as portas sempre rangiam muito e as pessoas tinham hábitos diferentes. Embora nos odiassem, meus vizinhos despertavam minha curiosidade, eram muito diferente de nós, família pequena e fácil de encontrar por aí, pai trabalhando fora, mãe cuidando da casa, a criança brincando solitária pela rua. Lembro nosso primeiro contato como se fosse ontem.
- Ei, boca de ferro - a rua toda me chamava assim desde que meus pais me forçaram a usar aparelho nos dentes, alegando que era em prol da minha saúde -, minha avó mandou avisar que se vocês não pararem de pendurar as roupas na janela ela vai tirar uma por uma e tacar fogo!
- Por que aquela rata velha não taca fogo em si mesma? O prédio todo agradeceria! - Retruquei, pensando se deveria levantar da sarjeta e me preparar para uma briga. Para minha surpresa, ele deu de ombros e sentou ao meu lado.
- Ela é mesmo uma rata velha. - Disse, enfim, e à partir daí começamos a sair juntos, escondidos, porque se algum parente nosso descobrisse nossa cumplicidade nós apanharíamos juntos.
    Íamos para escolas diferentes, eu ia para a escola boa do bairro, onde os alunos não levavam canivetes e, em compensação, tratavam os professores como empregados. A escola dele ficava à oito quarteirões pela rua de terra e não tinha porta nos banheiros, mas nunca ouvi ele reclamando, talvez porque a mãe dele fosse professora lá. Um dia, quando fui buscá-lo na saída, ela quase me viu e isso o fez tremer como vara verde, depois disso nunca mais passei por lá, já ele passou a me buscar na saída todos os dias, acho que ficou envergonhado da sua reação.
    Um dia, já com nossos dezoito anos, marcamos de nos encontrarmos na rua de cima, um fliperama meio falido que era a garantia de não sermos vistos por nenhuma parentada curiosa. Ele parecia nervoso, como no geral parecia, e eu nunca entendia o porquê. Fixou seus olhos com de madeira envernizada nos meus.
- Eu e você vamos assistir o pôr-do-sol na caixa d'água hoje. - Seu tom não permitia negativas e eu percebia o quão difícil pra ele estava sendo falar daquela forma, fiz que sim com a cabeça e ele sorriu, afastando-se em seguida. Não o vi até o final do dia, no local combinado, em cima da grande caixa d'água de onde dava pra ver a cidade inteira. O céu estava em uma cor bonita, tingindo tudo avermelhado, e o vento era forte na altura em que estávamos.
- Acho... acho que eu gosto de você. - Ele gaguejou e eu ri em resposta. Eu sabia, é lógico que sabia, só não conseguia entender porque ele fazia parecer tão errado. Pareceu ofendido com a minha reação.- Você não está me levando a sério!
- Não seja rabugento. Eu também gosto de você, pensei que sabia disso. - Eu achava graça na forma com que ele ficava facilmente envergonhado e em seu jeito de achar que todos os problemas, mesmo o menor deles, poderia crescer rapidamente até engoli-lo. - O que te traz tanto medo? Nossas famílias? Você já se sustenta sozinho, eu também, não precisamos deles.
    Ali, naquela caixa d'água ao pôr-do-sol, escondidos de tudo e de todos, ali foi o nosso primeiro beijo. Teve desde lágrimas até suspiros, ali eu soube que ia ficar com ele para sempre.
    Certamente nem tudo são flores. Tivemos momentos ótimos, entre viagens e encontros nas faculdades (ele escolheu Direito e eu, Turismo), acampamentos à céu aberto, todas as vezes que fugíamos para algum lugar na tentativa de encontrarmos um pouco de privacidade. Namoramos por três anos antes da família dele descobrir, parece que por alguma fofoca vinda pelos primos menores que iam ao fliperama. Foi expulso de casa. Meus pais, por sua vez, também não tiveram as melhores das reações: mamãe chorou muito e meu pai, enfurecido, só conseguia fitar a janela da rua em silêncio. Eu não sabia o que dizer para amansá-los, não considerava nada do que eu fazia um erro, pelo contrário. Para mim era como se estivessem armando um teatro, algum enredo de mentirinha, e quisessem que eu fizesse parte da mentira, um acordo subliminar em manter a ilusão de que aquilo realmente tinha alguma importância, que o certo seria cada um de nós seguir para um lado sem demonstrações de afeto, amor, nada. Só o vazio. Eu não aceitaria isso e, no dia seguinte, me mudei, sob ameaças de ter meu nome riscado no testamento.
    Eu estava perto de conseguir o diploma e ele, recém-formado, buscava emprego. Os perrengues financeiros devem ter sido os piores momentos da nossa história, e por umas três vezes achei que não passaríamos por essa, mas para onde iríamos? Só tínhamos a nós, seria sempre assim, nenhum olhar ameaçador dos vizinhos poderia tirar isso da gente. As viagens e acampamentos diminuiram, verdade, mas, depois que eu me formei e ele foi empregado, as coisas melhoraram consideravelmente. A reação dos outros é muito mais fácil de ignorar quando temos comida na mesa. Com o tempo, pudemos até voltar a viajar.
    De vez em quando eu falava em filhos. Meu parceiro, fruto de família grande e grosseira, odiava a ideia de pôr mais uma criança nesse mundo, detestava a possibilidade dela passar o que nós passamos, eu não podia culpá-lo, desisti da ideia. Com o tempo, me pareceu melhor assim. Quando a doença o alcançou, ele ainda pensava que era algum tipo de punição dos pais pelo mau-comportamento, como se sua genética fosse pautada pelo que a família pensava ou deixava de pensar. Ainda assim, nunca reclamou. Não reclamou quando o corpo aos poucos foi perdendo a força e nem quando as dores chegaram, e eu nunca entendia como ele conseguia encontrar espaço para sorrisos. Uma vez, cheguei a perguntar. Seus olhos brilharam, como se sempre tivesse esperado a chance de me responder:
- Foi você, Ulisses, só você.



(pelos deuses, haja dificuldade em escrever textos melosos viu!!!)

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Conto de sucesso

    Acabei por me separar muito cedo de minha família. Não por culpa de ninguém, talvez consequência de um 'destino' que não sei se acredito, fui morar do outro lado do país, trabalhar na casa de desconhecidos, um casal de velhinhos, eles eram legais, mas teimosos. A senhorinha, Doroti - com "i", sempre acrescentava -, gostava do fogão a lenha, insistia que o chá das três fosse feito naquela velharia. Eu sempre argumentei que não era uma boa ideia, que a casa de madeira era pequena e abafada demais para aquilo, que o clima estava seco e a região era de fogo fácil, ela não me ouvia, "tradições devem ser mantidas, mesmo que não façam muito sentido. O chá é feito no fogão à lenha".
   Em um dia como outro qualquer, fui na feira buscar o pão e, quando estava a umas quadras de casa, senti um cheiro forte de fumaça. Não precisei pensar muito, larguei o pão no chão e corri como nunca tinha corrido antes, a mente embaralhada com as possibilidades do que veria a seguir e o corpo agindo instintivamente, como uma máquina. A casinha de madeira de dois andares já estava um tanto tomada pelo fogo visivelmente iniciado na cozinha do primeiro andar e, na janela do quarto no segundo andar, a cabeça de Doroti apareceu, buscando ar. Quando me viu, sacudiu fracamente a mão e pareceu cair e eu já não pensei em nada, chutei a porta da residência, ignorando as lufadas de calor que escapavam aleatoriamente, e entrei. Meu psicológico não estava preparado o suficiente pro tanto de fogo que havia na sala, mas consegui distinguir rapidamente espaços por onde poderia correr. Segui por eles e subi a escada com cuidado, sabendo que alguns degraus já estavam comprometidos, em pouco tempo já me esquivava em direção ao quarto, cuja porta felizmente já estava aberta. Tanto Doroti quanto seu marido Noah já estavam ao chão, desmaiados, e eu não teria tempo para conferir se estavam vivos. Com uma força sobre-humana que eu nunca imaginei ter, joguei seus corpos finos um de cada lado dos meus ombros e fiz o caminho inverso ao que entrei. Eu sei que foi muito difícil, mas não lembro exatamente nada do trajeto, minha mente pensava apenas em como sair daquele local com os dois. Quando percebi que consegui, que estávamos fora da casa, deixei os dois delicadamente no chão e caí como uma tábua, sem conseguir mexer nenhum músculo. Já haviam pessoas ao redor, uma pequena multidão, e eu tenho certeza que aplaudiam, mas não conseguia me concentrar em nada que não fosse meu coração palpitando fortemente. Naquele momento, pela primeira vez desde que havia partido, senti saudades de casa. Senti algumas pessoas cuidando de mim e alguns flashs na visão, alguém me disse que os velhos estavam bem e medicados, e então eu apaguei.
    Acordei no hospital, não sei dizer quanto tempo depois, quando dei por mim estava sem roupa e a sala, cheia. Tentei organizar meus pensamentos, quem eram aquelas pessoas? Cinco homens inacreditavelmente parecidos: todos carecas, com um cavanhaque feio e uma barriga indubitavelmente formada por chopp. Cinco terninhos quadrados, duros e de péssima qualidade. O mais próximo de mim percebeu que acordei e virou suas bochechas avermelhadas para minha direção, parecendo contente. Falou algo sobre "uma grande oportunidade" e "não ser pirâmide", pareciam estar animados com a minha repercussão pós-incêndio, mas queriam me mandar para o Norte. Viagem paga. Como andava meio emocional, com saudade da família, percebi que não seria uma ideia tão ruim partir para uma direção um pouco mais próxima deles, aceitei e, em poucos dias para recuperação, parti.
    Eles não tinham mentido: garantiram que minha viagem seria paga e que eu teria transporte, comida e teto. Lógico, não tinham mencionado as condições, e elas eram horríveis. O carro era lento e barulhento, a comida parecia processada e vencida e as pousadas beira de estrada eram caras demais pro padrão "pó e pulgas", mas não reclamei, estava conhecendo um ou outro lugar que valia a pena pousar os olhos e isso era mais do que eu poderia pedir. Estava perto de uma ponte famosa por desvios de dinheiro estratosféricos e minha curiosidade ficou com vontade de vê-la, mas já estava quase me arrependendo porque o trânsito estava horrível. Depois de dez minutos com o carro parado, desci e fui ver o que estava acontecendo. Não precisei andar muito para entender, um rapaz magricela e de aspecto sofrível se debruçava no beiral da construção e ameaçava pular. Meu instinto de proteção à vida agiu imediatamente e me aproximei com cautela, falando coisas de que nem lembro mais, sempre mantendo um tom de voz leve e gentil. Eu não sabia bem o que estava fazendo, mas parecia estar funcionando e eu consegui a atenção do rapaz. Ouvi o que ele tinha a dizer, ele retribuiu ouvindo o que eu tinha para dizer e, no fim, nos abraçávamos já em local seguro, mais uma vez a claque se fazendo ouvir tão forte que fiquei com medo de balançarem a ponte. Com a situação acalmada, cada um retornou ao seu veículo e partiu.
    Foram alguns dias pelas estradas principais, dormindo mal, comendo coisas questionáveis, até que chegou o momento de fazer um desvio por uma estrada menor, que dava acesso a outra estrada menor, de terra, usada apenas quando alguém queria sumir do mapa ou arriscar desviar do pedágio e perder o carro. Busquei me distrair comentando em voz alta o que via, mas ficou chato depois do looping "gado, mineração, monocultura" e eu me via meio sem paciência para joguinhos, só queria chegar logo em algum lugar que valesse a pena. Como uma resposta para minhas preces, uma placa apontava "Cachoeira Véu da Noiva" e uma seta para a direita, logo abaixo de uma pichação do Carlos Adão. Virei e em pouco tempo a estradinha começou a seguir paralela a um rio, não o maior deles, mas um fundo o suficiente para  engolir o carro, um pensamento que me trouxe atenção quase que sem querer. Com um certo espanto, percebi uma pequena multidão à frente, apontando algo se rebatendo no riacho, encostei com o carro. "O que foi?", "O jacaré! O jacaré vai pegar meu cachorro!". Eram visivelmente turistas perdidos, mas não estavam errados, o pinscher que se debatia desesperadamente na água tinha chamado a atenção de um jacaré não muito grande mas grande o suficiente para causar um estrago nele. Consegui entregar meu celular para a turista desesperada e pulei na água, nadando rapidamente em direção ao cachorro. O jacaré, com a minha aproximação, saiu nadando para longe, mas tenho certeza que pude ver uma expressão ofendida em seu rosto. Saí do rio ao som de aplausos e entreguei o cachorro, que mais parecia um rato molhado, para a tutora, que me agradeceu muito emocionada com uma nota de cinco reais, "desculpa, é o que eu tenho".            Quando voltei pro carro percebi que ela havia gravado tudo no meu celular e enviado para a internet (não sem antes mudar para a própria conta e garantir os likes). Suspirei e pisei no acelerador, evitando a cachoeira que pararia antes, já tinha me molhado o suficiente.
   Só depois de horas fui chegar ao serviço, que incluía conversar com um fazendeiro forte e bruto que gostava de fazer metáforas envolvendo tratores e convencê-lo a entrar no negócio que até agora eu não entendia qual era. Foi surpreendentemente fácil, mas não reclamei, peguei o celular, disquei pro número indicado pelos meus cinco chefes de terninho e botei todos no viva-voz para terem uma conversa muito confusa sobre bolsa de valores. Pareciam estar se entendendo, então considerei meu serviço finalizado e saí de fininho, deixando o celular dado pela empresa. Já tinha combinado previamente com meus chefes que usaria o carro para visitar meus parentes depois do serviço e, como não queria perder tempo, peguei novamente a estrada menor. Estava com fome e também pensava merecer uma cerveja, não demorou muito e montei acampamento em um Bar e Pousada Três Irmãos.      Meu plano era comer e dormir cedo, para pegar a estrada assim que o sol levantasse no dia seguinte, mas as coisas não saíram como o planejado, não que tenha sido um problema. A questão é que o bar estava vazio, o que fez com que eu jantasse com o dono e sua filhinha, uma menina novinha que estava problemas com o dever de casa, principalmente português e matemática. Me propus a ajudá-la, mas o entusiasmo que isso gerou na moça fez com que ficássemos até as onze da noite colocando a matéria em dia. Não foi em vão, consegui acompanhar o rápido desenvolvimento dela e tive certeza de que, à partir de então, ela conseguiria fazer tudo sozinha. Como agradecimento, o dono do local não quis que eu pagasse, mas insisti. Não seria justo tirar o pouco de dinheiro que teriam acesso na baixa temporada. Dei boa noite, tive o sono dos anjos e, no dia seguinte, parti em direção à terra dos meus, não sem antes tirar uma foto, insistência do proprietário da pousada, para que ele pudesse emoldurar. Disse que, se dependesse dele, eu seria uma pessoa famosa.
    Tive que voltar à estrada principal depois de um tempo, fato que não me trazia muita alegria, mas segui mantendo o entusiasmo de reencontrar pessoas que eu não via a tanto tempo. Já reconhecia o local onde estava, mesmo tendo saído com pouca idade, e as lembranças jorravam como um filme. Parei na frente da simples casa amarela da minha avó, que já estava avisada da minha chegada e garantira que a família toda estaria presente. Logo que entrei, uma festa, todos queriam saber mais das aventuras que eu havia me metido, tinham lido tudo a respeito na Internet, queriam saber se eu tinha ideia de que era uma pessoa famosa agora. Com a poeira do primeiro encontro baixando, uma voz inidentificável é ouvida ao fundo: - Mas cadê o seu diploma? Com sua idade seu primo já tinha passado em um concurso público.
 





   

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

O mundo vai acabar na sua mão, fator de proteção solar 1 milhão

Desde criança sempre penso em quando e como o mundo vai acabar. Mamãe sempre dizia que esses papos eram constantes mesmo em sua época, e que o mundo ainda assim seguia de pé, mas eu mantinha forte em mim a sensação de que, em algum momento da minha vida, eu me depararia com o fim do mundo.
Nos meus sonhos o fim do mundo sempre vem acompanhado de várias luas no céu. É tão frequente que, ao ver o céu com mais de uma lua, já sei imediatamente que meteoros cairão, ou uma imensa onda vai surgir arrastando tudo, ou o fogo vai se espalhar por todas as partes. É tiro e queda e o fim do mundo se espalha até que eu acorde.
Não sei de onde surgiu essa minha devoção. Acho que só me parece óbvio: aquilo que existe um dia deixa de existir. Oportunidades não faltam, temos um universo inteiro de grandes massas viajando com velocidades incríveis, todas elas esperando uma oportunidade de se chocar em algo grande e fazer história. Por que não aqui? 
Não é que eu QUEIRA que o mundo deixe de existir, eu gosto bastante do mundo, gosto mesmo. Temos belas árvores, animais engraçados, umas paisagens de tirar o folêgo e nossa água é gostosa de beber e mergulhar. Mas não basta. Barragens se quebram, chuvas se tornam deslizamentos, a floresta que na minha infância era conhecida como "pulmão do mundo" aos poucos se torna pasto pra gado, é, mundão, as perspectivas não são muito animadoras. O Trump quer invadir a Venezuela. Nós, como bons animais de estimação, estamos ao lado dele, sempre obedecendo qualquer chamado dos gringos. O mundo mais uma vez se sacode, provavelmente tentando tirar as pulgas que o parasitam, mas somos muito resistentes.
Quando criança, eu achava que o mundo acabaria graças àquele vulcão gigante nos EUA, ou alguma quebra incalculável em alguma placa tectônica, ou o famoso meteoro. Não, hoje eu sei, é fácil ver, existem coisas tão perigosas quanto um desastre climático, nós mesmos vamos nos destruir, assim como nós mesmos envenenamos nossa comida e o solo onde ela cresce. 
A humanidade sempre tentou calcular o fim do mundo, é lógico, nós sabemos que ele é inevitável, sabemos que não vai demorar tanto quanto a velhice do Sol, sabemos nossa capacidade de destruir tudo em que tocamos, como não saberíamos? É só olhar ao redor. O que vai nos destruir é nossa sede de guerra.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Murphy

Era um mico, um desses saguis que existem aos montes na cidade, mas esse resolveu ficar na nossa casa. Veja bem, nós não o prendíamos, o bando dele ia e vinha livremente, aproveitando-se ocasionalmente das frutas deixadas em uma árvore no quintal. Mas esse ficou, parecia gostar da gente, ou ao menos dos meus pais, eu era só um bebê.
Micos são rabugentos. É só você ter um convívio mínimo com eles que consegue perceber e, em mim, esse era um conhecimento já internalizado. Ele, que gosto de, hoje em dia, chamar de Murphy, invadia o cercadinho onde eu ficava (pais ocupados e bebês peraltas por vezes levam às jaulinhas). Segundo meus pais, que se lembram, eram mordidas mútuas: brigávamos, e muito. Acho que ele não gostava que eu recebesse mimos e eu não gostava que ele invadisse meu território. Uma relação comum a dois animais.
No fim, embora eu goste do fato de que o primeiro animal que brinquei na vida tenha sido um macaco, preferia que ele não tivesse passado por nós. Não estávamos preparados para recebê-lo, ou ele não estava preparado para a vida humana. Em uma das visitas do pai da minha irmã, bateu a porta sem ver que o mico vinha atrás, ficou metade pra dentro, metade pra fora. Diz que foi um desespero lá em casa, mas engana-se quem pensa que Murphy morreu, ficou um tempo meio estrupiado, sim, mas sobreviveu e, semanas depois, não se via sinais da trágica história, ele estava pronto para outra.
O problema é que "a outra" não demorou muito a chegar. Saímos de casa, todos, não sei dizer o por quê, só sei que era dia e que ninguém pretendia demorar. Murphy eu nem sei dizer se rondava por ali, por vezes chegava quando não estávamos em casa, nem sempre esperava voltarmos, naquele dia esperou. 
Parecia uma rápida troca de canal entre um filme qualquer de comédia, nós chegando em casa, o sol começando a se pôr, meu pai se espreguiçando e deitando na rede, o canal trocou e fomos para um filme de terror, tudo bem rápido. Murphy estava na rede, já sem vida a um tempo, embolado entre os fiapos de pano que caíam pelas extremidades. Até hoje me pergunto se foi rápido, se ele sofreu, ou qual o motivo dele ter ido em uma rede cuja importância nunca havia dado. Nunca vou saber, mas vou morrer buscando na memória alguma lembrança daquelas mordidas. 

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Naquela meta de escrever pelo menos 30 min por dia mesmo que seja algo nada ver

    Ela nunca fora uma criança calma. Fruto de pais desalmados que não ligavam para nada além de quanto lucro conseguiam explorando o trabalho alheio, acabara por se tornar o pesadelo das babás, inúmeras, desesperadas enquanto se escondia pelos cantos mais sujos e repugnantes da mansão dourada. Corria pelos corredores abandonados, uma das cautelas que seu pai mantinha em tempos de crise, fechar partes da casa para economizar energia e os serviços de limpeza. Se o rígido homem descobrisse que corria displicentemente por ali, apanharia de cinta, não sua habitual cinta elegante de couro, a cinza de metal trançado de um dos seus seguranças, um homem grande, brusco e de poucas palavras, que era sempre o designado para dar-lhe uma sova corretiva.
    Pulou uma grande teia de aranha e acabou se percebendo em uma sala circular úmida e com um forte cheiro de mofo. Gotas caíam pelas paredes de pedra e o som delas ricocheteando no chão ecoava pelo salão vazio e, do lado imediatamente oposto ao que chegara, três portas idênticas de ferro escuro se encontravam fechadas. Sentia que precisava tomar uma decisão importante, mesmo que não soubesse definir bem o que era. As portas pareciam pulsar e, quando seus passos ecoaram secos pelo chão duro, só percebeu que encostava na porta do meio quando sentiu o frio do metal percorrer a mão rechonchuda. Lembrou-se da mãe, provavelmente bebendo seus drinks coloridos e fumando aqueles rolos fedorentos de sempre em alguns andares para cima, ela costumava ser mais presente, mais amorosa, mas a presença do marido costumava abafá-la como uma rosa que tentava sobreviver em meio ao fogo mas, mesmo com toda sua força, murchava aos poucos. Não conseguia recordar se já havia vido os pais felizes alguma vez, mas também não lembrava de tê-los visto tão bravos um com o outro como ultimamente. Girou a maçaneta da porta, que cedeu facilmente com um sonoro "cleck" e deixou à mostra um túnel, pequeno o suficiente para que ela, considerada uma das menores da turma, entrasse com facilidade. Um pedaço do vestido se prendeu à porta, deixando um talho que só foi crescendo à medida que se arrastava pela terra crua. Iria ter problemas quando voltasse para casa, mas será que queria voltar? Será que notariam suas ausência?
    Ouviu um som brusco quando a porta de metal se fechou de repente, o barulho ecoando pelo caminho que seguia como se este fosse interminável. Poderia uma garota ficar perdida em um túnel, algo que tem começo e fim? Pensava que, se existia uma entrada, existia uma saída, assim como praticamente todas as situações que conhecera durante sua curta existência de vida, e seguiu arrastando seus cotovelos frágeis pelo chão. Se pudesse escolher, teria nascido numa família menos rica. Ouvira uma vez o padre conversar com uma irmã na igreja, ele dizia que o dinheiro corrompia os homens, tornava-os loucos sedentos por mais, sem nunca encontrarem sinais de saciação. Não sabia o que era saciação, mas tinha certeza que essa era a causa da raiva do pai, o motivo pelo qual ele murchava sua mãe sempre que tinha oportunidade. Talvez, ela suspirou sem ao menos perceber, talvez seu pai preferia que não tivesse nascido, então não teria que gastar com ela. Talvez ele pensasse que ter filhos era algo que podia escolher, assim como deixar os cômodos da mansão abertos ou fechados, talvez ele achasse que tinha alguma forma de reverter a escolha. Não podia ter certeza, nunca entendera dessas coisas, poderia? Era só uma criança.
Olhando sempre pro chão, não percebeu a claridade até que essa tomasse conta e a cegasse por alguns segundos. Veio em bom momento, porque ela já estava cansada da brincadeira de se arrastar por um túnel duro, mas também não queria voltar para casa. Com o olhar mais acostumado, olhou ao redor. Parecia um penhasco, o topo de um grande mundo que nunca imaginou existir, e sorriu quando o vento balançou fortemente seus cabelos e vestido, como se ela fosse uma bandeira maior do que o comum. A altura a intrigava, seu pai nunca a deixava chegar perto das janelas da mansão, assim como nunca deixava ela sair ou fazer qualquer coisa que fosse minimamente divertida. Sempre dizia que diversão era para os fracos de espírito e que nada forjava melhor do que a dor. Não sei o que papai conhecia por dor, mas sempre que sua imagem vem à mente o homem possui uma expressão de algo muito dolorido dentro de si, talvez nem ele saiba, é tão difícil entendê-lo. Por vezes sentia raiva, queria gritar, esbravejar, fugir, mas se continha, o silêncio era sempre a opção mais segura, que não levava cintas às mãos de ninguém. Aprendeu muito com o silêncio, mas estava tão cansada, cansada das regras, cansada de se conter, falar baixo, cruzas as pernas, "senta como uma menina!", mansão, escola, igreja, mansão, a vida devia ser mais. Devia?
    Uma vez o padre falou de anjos no sermão. Dizia que eram espíritos de crianças que morreram por bruxas, e por isso não podiam seguir para o outro lado totalmente, ficavam voando por aí e ajudando os humanos na esperança de chamarem a atenção do Criador. Não acreditava muito no padre, achava difícil se concentrar no que ele falava, mas flagrou-se imaginando como devia ser legal ser um anjo. Claro, a parte de sempre tentar chamar a atenção lhe era familiar, um sentimento quase que palpável, mas que não sabia dar nome e não lhe trazia felicidade, embora talvez fosse um bom preço a se pagar pelo poder de saber voar. Olhou o mar revolto batendo contra as rochas, muitos metros abaixo de si, e pensou em pular, descobrir se anjos só percebiam suas asas quando estavam caindo, mas sabia que não faria isso, um lado seu já era maduro o suficiente para entender o que aconteceria com ela se pulasse.
    Deu a volta para retornar ao túnel mas, antes de agachar-se para entrar nele novamente, virou-se e soltou um longo grito, o mais forte que conseguia dar, gritou até perder o ar e, junto à isso, sentiu o chão todo tremer e o local começar a desabar, pedras imensas caindo junto com ela, ao seu redor. Era meio injusto que estivera condenada a morrer mesmo antes de nascer, mas não importava mais, fechou os olhos e sentiu o vento cortante passar por ela, o som do mar cada vez mais alto. Se imaginasse um pouquinho mais forte, até que parecia com voar.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Berinjela

Confesso que tive preconceitos quando te vi pela primeira vez. Não sei, parecia tão diferente de tudo que eu já tinha visto! Sabe, sou taurina, eu até gosto das mudanças, mas elas me aterrorizam muito e, até o momento-chave, onde o medo passa a barreira e o conhecimento encontra uma forma de chegar até mim, meu coração palpita.
Não sei. Eu gostava do seu jeito cru, gostava da sua aparência bonita e do jeito que sentia seu toque, mas a coragem -ah, a coragem!- se esvaziava e eu me afastava, envergonhada, sem tempo para novos desafios. Melhor não.
Um dia, em uma terra distante que quase nem lembro, longe de tudo aquilo que eu considerava conhecer, não fugi, era o que tinha e eu aceitei, seria o momento de te conhecer melhor.
Seu aspecto praieiro, à milanesa, foi a primeira coisa que me chamou a atenção, o cheiro de mar, fritura, calor, muita gente ao redor, burburinho, movimento, pouco tempo para pensar, era a hora. O primeiro toque veio sem expectativas: sincero, nu, salgado de mar. Arfei fundo com a descoberta, e eu gostei! Minhas verdades caíram pelos meus dedos, fragmentadas, eu já não entendia nada, como pode? Depois de tantos anos, considerada mulher adulta, era como descobrir, depois de anos morando em Curitiba, que o céu era azul. Te engoli junto com meu orgulho, sabe como é, quando conhecemos algo novo não queremos mais largar, mas tudo tem um fim, sempre tem, e desde o primeiro momento eu soube que eu iria sofrer no final. Faz parte, aproveitar o momento é uma arte, saboreei, acabou, mas eu nunca esqueci.
E agora estou aqui, tirando vinte minutos do meu dia para um exercício de escrita já programado, para honrá-la como daquela primeira vez em que te pus no prato, sempre grata, berinjela. Obrigada.