terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Naquela meta de escrever pelo menos 30 min por dia mesmo que seja algo nada ver

    Ela nunca fora uma criança calma. Fruto de pais desalmados que não ligavam para nada além de quanto lucro conseguiam explorando o trabalho alheio, acabara por se tornar o pesadelo das babás, inúmeras, desesperadas enquanto se escondia pelos cantos mais sujos e repugnantes da mansão dourada. Corria pelos corredores abandonados, uma das cautelas que seu pai mantinha em tempos de crise, fechar partes da casa para economizar energia e os serviços de limpeza. Se o rígido homem descobrisse que corria displicentemente por ali, apanharia de cinta, não sua habitual cinta elegante de couro, a cinza de metal trançado de um dos seus seguranças, um homem grande, brusco e de poucas palavras, que era sempre o designado para dar-lhe uma sova corretiva.
    Pulou uma grande teia de aranha e acabou se percebendo em uma sala circular úmida e com um forte cheiro de mofo. Gotas caíam pelas paredes de pedra e o som delas ricocheteando no chão ecoava pelo salão vazio e, do lado imediatamente oposto ao que chegara, três portas idênticas de ferro escuro se encontravam fechadas. Sentia que precisava tomar uma decisão importante, mesmo que não soubesse definir bem o que era. As portas pareciam pulsar e, quando seus passos ecoaram secos pelo chão duro, só percebeu que encostava na porta do meio quando sentiu o frio do metal percorrer a mão rechonchuda. Lembrou-se da mãe, provavelmente bebendo seus drinks coloridos e fumando aqueles rolos fedorentos de sempre em alguns andares para cima, ela costumava ser mais presente, mais amorosa, mas a presença do marido costumava abafá-la como uma rosa que tentava sobreviver em meio ao fogo mas, mesmo com toda sua força, murchava aos poucos. Não conseguia recordar se já havia vido os pais felizes alguma vez, mas também não lembrava de tê-los visto tão bravos um com o outro como ultimamente. Girou a maçaneta da porta, que cedeu facilmente com um sonoro "cleck" e deixou à mostra um túnel, pequeno o suficiente para que ela, considerada uma das menores da turma, entrasse com facilidade. Um pedaço do vestido se prendeu à porta, deixando um talho que só foi crescendo à medida que se arrastava pela terra crua. Iria ter problemas quando voltasse para casa, mas será que queria voltar? Será que notariam suas ausência?
    Ouviu um som brusco quando a porta de metal se fechou de repente, o barulho ecoando pelo caminho que seguia como se este fosse interminável. Poderia uma garota ficar perdida em um túnel, algo que tem começo e fim? Pensava que, se existia uma entrada, existia uma saída, assim como praticamente todas as situações que conhecera durante sua curta existência de vida, e seguiu arrastando seus cotovelos frágeis pelo chão. Se pudesse escolher, teria nascido numa família menos rica. Ouvira uma vez o padre conversar com uma irmã na igreja, ele dizia que o dinheiro corrompia os homens, tornava-os loucos sedentos por mais, sem nunca encontrarem sinais de saciação. Não sabia o que era saciação, mas tinha certeza que essa era a causa da raiva do pai, o motivo pelo qual ele murchava sua mãe sempre que tinha oportunidade. Talvez, ela suspirou sem ao menos perceber, talvez seu pai preferia que não tivesse nascido, então não teria que gastar com ela. Talvez ele pensasse que ter filhos era algo que podia escolher, assim como deixar os cômodos da mansão abertos ou fechados, talvez ele achasse que tinha alguma forma de reverter a escolha. Não podia ter certeza, nunca entendera dessas coisas, poderia? Era só uma criança.
Olhando sempre pro chão, não percebeu a claridade até que essa tomasse conta e a cegasse por alguns segundos. Veio em bom momento, porque ela já estava cansada da brincadeira de se arrastar por um túnel duro, mas também não queria voltar para casa. Com o olhar mais acostumado, olhou ao redor. Parecia um penhasco, o topo de um grande mundo que nunca imaginou existir, e sorriu quando o vento balançou fortemente seus cabelos e vestido, como se ela fosse uma bandeira maior do que o comum. A altura a intrigava, seu pai nunca a deixava chegar perto das janelas da mansão, assim como nunca deixava ela sair ou fazer qualquer coisa que fosse minimamente divertida. Sempre dizia que diversão era para os fracos de espírito e que nada forjava melhor do que a dor. Não sei o que papai conhecia por dor, mas sempre que sua imagem vem à mente o homem possui uma expressão de algo muito dolorido dentro de si, talvez nem ele saiba, é tão difícil entendê-lo. Por vezes sentia raiva, queria gritar, esbravejar, fugir, mas se continha, o silêncio era sempre a opção mais segura, que não levava cintas às mãos de ninguém. Aprendeu muito com o silêncio, mas estava tão cansada, cansada das regras, cansada de se conter, falar baixo, cruzas as pernas, "senta como uma menina!", mansão, escola, igreja, mansão, a vida devia ser mais. Devia?
    Uma vez o padre falou de anjos no sermão. Dizia que eram espíritos de crianças que morreram por bruxas, e por isso não podiam seguir para o outro lado totalmente, ficavam voando por aí e ajudando os humanos na esperança de chamarem a atenção do Criador. Não acreditava muito no padre, achava difícil se concentrar no que ele falava, mas flagrou-se imaginando como devia ser legal ser um anjo. Claro, a parte de sempre tentar chamar a atenção lhe era familiar, um sentimento quase que palpável, mas que não sabia dar nome e não lhe trazia felicidade, embora talvez fosse um bom preço a se pagar pelo poder de saber voar. Olhou o mar revolto batendo contra as rochas, muitos metros abaixo de si, e pensou em pular, descobrir se anjos só percebiam suas asas quando estavam caindo, mas sabia que não faria isso, um lado seu já era maduro o suficiente para entender o que aconteceria com ela se pulasse.
    Deu a volta para retornar ao túnel mas, antes de agachar-se para entrar nele novamente, virou-se e soltou um longo grito, o mais forte que conseguia dar, gritou até perder o ar e, junto à isso, sentiu o chão todo tremer e o local começar a desabar, pedras imensas caindo junto com ela, ao seu redor. Era meio injusto que estivera condenada a morrer mesmo antes de nascer, mas não importava mais, fechou os olhos e sentiu o vento cortante passar por ela, o som do mar cada vez mais alto. Se imaginasse um pouquinho mais forte, até que parecia com voar.

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