Acabei por me separar muito cedo de minha família. Não por culpa de ninguém, talvez consequência de um 'destino' que não sei se acredito, fui morar do outro lado do país, trabalhar na casa de desconhecidos, um casal de velhinhos, eles eram legais, mas teimosos. A senhorinha, Doroti - com "i", sempre acrescentava -, gostava do fogão a lenha, insistia que o chá das três fosse feito naquela velharia. Eu sempre argumentei que não era uma boa ideia, que a casa de madeira era pequena e abafada demais para aquilo, que o clima estava seco e a região era de fogo fácil, ela não me ouvia, "tradições devem ser mantidas, mesmo que não façam muito sentido. O chá é feito no fogão à lenha".
Em um dia como outro qualquer, fui na feira buscar o pão e, quando estava a umas quadras de casa, senti um cheiro forte de fumaça. Não precisei pensar muito, larguei o pão no chão e corri como nunca tinha corrido antes, a mente embaralhada com as possibilidades do que veria a seguir e o corpo agindo instintivamente, como uma máquina. A casinha de madeira de dois andares já estava um tanto tomada pelo fogo visivelmente iniciado na cozinha do primeiro andar e, na janela do quarto no segundo andar, a cabeça de Doroti apareceu, buscando ar. Quando me viu, sacudiu fracamente a mão e pareceu cair e eu já não pensei em nada, chutei a porta da residência, ignorando as lufadas de calor que escapavam aleatoriamente, e entrei. Meu psicológico não estava preparado o suficiente pro tanto de fogo que havia na sala, mas consegui distinguir rapidamente espaços por onde poderia correr. Segui por eles e subi a escada com cuidado, sabendo que alguns degraus já estavam comprometidos, em pouco tempo já me esquivava em direção ao quarto, cuja porta felizmente já estava aberta. Tanto Doroti quanto seu marido Noah já estavam ao chão, desmaiados, e eu não teria tempo para conferir se estavam vivos. Com uma força sobre-humana que eu nunca imaginei ter, joguei seus corpos finos um de cada lado dos meus ombros e fiz o caminho inverso ao que entrei. Eu sei que foi muito difícil, mas não lembro exatamente nada do trajeto, minha mente pensava apenas em como sair daquele local com os dois. Quando percebi que consegui, que estávamos fora da casa, deixei os dois delicadamente no chão e caí como uma tábua, sem conseguir mexer nenhum músculo. Já haviam pessoas ao redor, uma pequena multidão, e eu tenho certeza que aplaudiam, mas não conseguia me concentrar em nada que não fosse meu coração palpitando fortemente. Naquele momento, pela primeira vez desde que havia partido, senti saudades de casa. Senti algumas pessoas cuidando de mim e alguns flashs na visão, alguém me disse que os velhos estavam bem e medicados, e então eu apaguei.
Acordei no hospital, não sei dizer quanto tempo depois, quando dei por mim estava sem roupa e a sala, cheia. Tentei organizar meus pensamentos, quem eram aquelas pessoas? Cinco homens inacreditavelmente parecidos: todos carecas, com um cavanhaque feio e uma barriga indubitavelmente formada por chopp. Cinco terninhos quadrados, duros e de péssima qualidade. O mais próximo de mim percebeu que acordei e virou suas bochechas avermelhadas para minha direção, parecendo contente. Falou algo sobre "uma grande oportunidade" e "não ser pirâmide", pareciam estar animados com a minha repercussão pós-incêndio, mas queriam me mandar para o Norte. Viagem paga. Como andava meio emocional, com saudade da família, percebi que não seria uma ideia tão ruim partir para uma direção um pouco mais próxima deles, aceitei e, em poucos dias para recuperação, parti.
Eles não tinham mentido: garantiram que minha viagem seria paga e que eu teria transporte, comida e teto. Lógico, não tinham mencionado as condições, e elas eram horríveis. O carro era lento e barulhento, a comida parecia processada e vencida e as pousadas beira de estrada eram caras demais pro padrão "pó e pulgas", mas não reclamei, estava conhecendo um ou outro lugar que valia a pena pousar os olhos e isso era mais do que eu poderia pedir. Estava perto de uma ponte famosa por desvios de dinheiro estratosféricos e minha curiosidade ficou com vontade de vê-la, mas já estava quase me arrependendo porque o trânsito estava horrível. Depois de dez minutos com o carro parado, desci e fui ver o que estava acontecendo. Não precisei andar muito para entender, um rapaz magricela e de aspecto sofrível se debruçava no beiral da construção e ameaçava pular. Meu instinto de proteção à vida agiu imediatamente e me aproximei com cautela, falando coisas de que nem lembro mais, sempre mantendo um tom de voz leve e gentil. Eu não sabia bem o que estava fazendo, mas parecia estar funcionando e eu consegui a atenção do rapaz. Ouvi o que ele tinha a dizer, ele retribuiu ouvindo o que eu tinha para dizer e, no fim, nos abraçávamos já em local seguro, mais uma vez a claque se fazendo ouvir tão forte que fiquei com medo de balançarem a ponte. Com a situação acalmada, cada um retornou ao seu veículo e partiu.
Foram alguns dias pelas estradas principais, dormindo mal, comendo coisas questionáveis, até que chegou o momento de fazer um desvio por uma estrada menor, que dava acesso a outra estrada menor, de terra, usada apenas quando alguém queria sumir do mapa ou arriscar desviar do pedágio e perder o carro. Busquei me distrair comentando em voz alta o que via, mas ficou chato depois do looping "gado, mineração, monocultura" e eu me via meio sem paciência para joguinhos, só queria chegar logo em algum lugar que valesse a pena. Como uma resposta para minhas preces, uma placa apontava "Cachoeira Véu da Noiva" e uma seta para a direita, logo abaixo de uma pichação do Carlos Adão. Virei e em pouco tempo a estradinha começou a seguir paralela a um rio, não o maior deles, mas um fundo o suficiente para engolir o carro, um pensamento que me trouxe atenção quase que sem querer. Com um certo espanto, percebi uma pequena multidão à frente, apontando algo se rebatendo no riacho, encostei com o carro. "O que foi?", "O jacaré! O jacaré vai pegar meu cachorro!". Eram visivelmente turistas perdidos, mas não estavam errados, o pinscher que se debatia desesperadamente na água tinha chamado a atenção de um jacaré não muito grande mas grande o suficiente para causar um estrago nele. Consegui entregar meu celular para a turista desesperada e pulei na água, nadando rapidamente em direção ao cachorro. O jacaré, com a minha aproximação, saiu nadando para longe, mas tenho certeza que pude ver uma expressão ofendida em seu rosto. Saí do rio ao som de aplausos e entreguei o cachorro, que mais parecia um rato molhado, para a tutora, que me agradeceu muito emocionada com uma nota de cinco reais, "desculpa, é o que eu tenho". Quando voltei pro carro percebi que ela havia gravado tudo no meu celular e enviado para a internet (não sem antes mudar para a própria conta e garantir os likes). Suspirei e pisei no acelerador, evitando a cachoeira que pararia antes, já tinha me molhado o suficiente.
Só depois de horas fui chegar ao serviço, que incluía conversar com um fazendeiro forte e bruto que gostava de fazer metáforas envolvendo tratores e convencê-lo a entrar no negócio que até agora eu não entendia qual era. Foi surpreendentemente fácil, mas não reclamei, peguei o celular, disquei pro número indicado pelos meus cinco chefes de terninho e botei todos no viva-voz para terem uma conversa muito confusa sobre bolsa de valores. Pareciam estar se entendendo, então considerei meu serviço finalizado e saí de fininho, deixando o celular dado pela empresa. Já tinha combinado previamente com meus chefes que usaria o carro para visitar meus parentes depois do serviço e, como não queria perder tempo, peguei novamente a estrada menor. Estava com fome e também pensava merecer uma cerveja, não demorou muito e montei acampamento em um Bar e Pousada Três Irmãos. Meu plano era comer e dormir cedo, para pegar a estrada assim que o sol levantasse no dia seguinte, mas as coisas não saíram como o planejado, não que tenha sido um problema. A questão é que o bar estava vazio, o que fez com que eu jantasse com o dono e sua filhinha, uma menina novinha que estava problemas com o dever de casa, principalmente português e matemática. Me propus a ajudá-la, mas o entusiasmo que isso gerou na moça fez com que ficássemos até as onze da noite colocando a matéria em dia. Não foi em vão, consegui acompanhar o rápido desenvolvimento dela e tive certeza de que, à partir de então, ela conseguiria fazer tudo sozinha. Como agradecimento, o dono do local não quis que eu pagasse, mas insisti. Não seria justo tirar o pouco de dinheiro que teriam acesso na baixa temporada. Dei boa noite, tive o sono dos anjos e, no dia seguinte, parti em direção à terra dos meus, não sem antes tirar uma foto, insistência do proprietário da pousada, para que ele pudesse emoldurar. Disse que, se dependesse dele, eu seria uma pessoa famosa.
Tive que voltar à estrada principal depois de um tempo, fato que não me trazia muita alegria, mas segui mantendo o entusiasmo de reencontrar pessoas que eu não via a tanto tempo. Já reconhecia o local onde estava, mesmo tendo saído com pouca idade, e as lembranças jorravam como um filme. Parei na frente da simples casa amarela da minha avó, que já estava avisada da minha chegada e garantira que a família toda estaria presente. Logo que entrei, uma festa, todos queriam saber mais das aventuras que eu havia me metido, tinham lido tudo a respeito na Internet, queriam saber se eu tinha ideia de que era uma pessoa famosa agora. Com a poeira do primeiro encontro baixando, uma voz inidentificável é ouvida ao fundo: - Mas cadê o seu diploma? Com sua idade seu primo já tinha passado em um concurso público.
Nenhum comentário:
Postar um comentário