domingo, 24 de fevereiro de 2019

Meritogracinha

    Já fui um homem sem nada, já fui um que teve de tudo, posso dizer que, de todos os momentos na vida de um homem, a pior é o que ele tem tudo e perde. É nesse momento que enxergamos quem esteve conosco esse tempo todo.
    Deixe eu me apresentar. Meu nome é Pedro Cardozo, que nem o ator, só que com "z". Sou um cara simples, tive uma infância dura, morava no interior do estado com a minha mãe, Dona Iracy, pai desaparecido, mamãe não conseguia mais andar e a situação estava apertada, arranjei pelo jornal um emprego de meio turno, num desses escritórios de seguros da cidade. Me lembro bem do desânimo que se instaurou quando percebi que teria que ir para escola, voltar para casa, servir o almoço de mamãe, pegar o ônibus, seguir para o escritório, trabalhar, ônibus novamente, cama... não parecia muito a vida que eu, criança idealizadora, queria ter, mas sabia que passaria por isso, era filho de Dona Iracy, afinal, e não tinha uma pessoa naquela rua que não tivesse ouvido minha mãe dizer, entre um trago e outro dos cigarros de palha que costumava fumar, "o trabalho, meu filho, o trabalho dignifica o homem".
    Então eu fui. No primeiro dia eu estava tão nervoso que minhas mãos tremiam como galhos numa ventania, parei na frente do endereço passado por telefone, era um pequeno prédio de três andares espremido entre um açougue com forte cheiro de peixe e uma pequena distribuidora de doces. Olhei pela porta vazada e só vi um corredor com uma escada para cima, sem portaria, suspirei fundo para controlar o nervosismo e toquei o interfone, temendo ter tocado forte demais, e se eles pensassem que eu era nervoso demais? Esperei algum tempo, mas não teve resposta, então toquei novamente. Nada. Tentei mais três toquinhos, já começando a pensar que aquilo era algum tipo de pegadinha e o emprego nem existia, quando ouvi uma voz feminina e fiquei confuso, porque não vi ninguém.
- Ei, garoto, aqui em cima!
    Tive que dar alguns passos para trás para conseguir enxergar a janela do primeiro andar, onde uma moça não muito mais velha do que eu gesticulava animadamente.
- O interfone está ruim! Aperta de novo lá que eu vou liberar para você!
    Fiz o que ela mandou e a porta abriu com um "click". Subi as escadas mais nervoso do que quando cheguei, veja bem, não é sempre que eu conversava com meninas bonitas e ali era o último lugar que eu pensava que fosse encontrar uma, tinha medo de gaguejar, suar, ou pior, perder a chance do emprego! Quando ela abriu a porta, loura, sorridente, com um casaquinho rosa que com certeza não tinha sido fabricado na cidade, eu fui o mais profissional que consegui, engoli saliva fortemente e balbuciei algo como "oi, anh... entrevista".
- Pedro, não é? - Ela folheou uma pranchetinha, fazendo um gesto com as mãos para que eu entrasse logo depois dela. O ambiente era frio, ar-condicionado ligado no último, e por dentro parecia bem maior do que por fora. Tinha pelo menos umas quinze pessoas, cada uma com a sua cabine, e ninguém parecia prestar muita atenção em mim, estavam conversando entre si ou usando um fone de ouvido estranho na cabeça. A loura voltou a falar comigo. - Meu nome é Shar. Nossa chefe, Dona Olívia, não tá, e o Seu Plínio, que é marido dela, também não, eu ouvi dizer que eles vão passar o resto da semana no litoral fazendo planos conjugais, mas não sei bem, foi Marlene que me contou e todo mundo sabe que Marlene não é a fonte mais confiável do mundo.
    Ela fitou os olhos castanhos em mim esperando uma resposta e eu fiz que sim com a cabeça, meio atordoado. Não entendia como ela conseguia falar tão rápido sem cuspir o chiclete. Fui seguindo atrás de Shar até uma cabine empoeirada.
- Essa daqui era do Fabão. - Ela apontou um cara careca e bigodudo em um retrato colado na parede da cabine. - Você pode ficar com ela, ele não volta mais.
- Foi demitido? - Consegui perguntar, aproveitando qualquer gancho de conversa possível para fazer a menina ouvir minha voz.
- Não, morreu. - Ela deu de ombros. - As pessoas costumam trabalhar aqui a vida inteira.
    Como se um furacão tivesse entrado na sala, uma mulher ruiva com seus lá cinquenta anos abriu a porta, lançando frases motivacionais tão bem como faria um militar. Ela alcançou Shar com o olhar e veio marchando em nossa direção.
- Sharlene, preciso que me envie os documentos dos Vital e ligue para Marilda, diga que odiei a nova cor e quero voltar para a antiga, mas que ela vai ter que me dar um desconto nisso tudo aí. - Finalmente ela pareceu meu perceber. - Você é Pedro? Minha sala, agora, vou te falar um pouco da SegurosLife. - E saiu, tão repentinamente como entrou. Shar me empurrou levemente em direção a sala da mulher e eu entrei, fechando a porta atrás de mim.
    Dona Olívia me mandou sentar e passou um sermão sobre os valores da empresa, sobre como eram todos uma família, sobre vestir a camisa da empresa, eu fiquei deslumbrado. Nunca havia sido parte de algo, e o jeito que eles pareciam tão unidos me trouxe pontinhas de inveja, eu também queria aquilo. Quando voltei pra casa e disse pra mamãe como fora, vi lágrimas nos olhos dela.
    Em pouco tempo a escola se tornou a obrigação e o trabalho um lazer. Digo, claro que nem sempre era legal atender os possíveis clientes e lidar com os documentos dos seguros, mas, como sugeriu Dona Olívia, eu vesti a camisa da empresa. Peguei rápido minhas funções, batia as metas em tempo recorde, sempre jogando limpo. Seu Plínio, que fui conhecer só um tempo depois, dizia que ninguém fazia um café bom como o meu, e o casal parecia querer me adotar toda vez que eu ficava além do horário em uma sexta-feira ou até sábado. Eu não ganhava muito dinheiro, mas ganhava o suficiente para bancar as contas de casa e, de quebra, poder levar algum docinho da distribuidora vizinha para mamãe, não podia reclamar.
    Um dia, depois de uns três anos de empresa, Seu Plínio nos apresentou seu filho.
- Pessoal, Junior voltou do intercâmbio e agora vai trabalhar conosco, sejam legais com ele, ensinem o que tem que ser feito. - Meu chefe virou os óculos para mim. - Pedro, você vai ser responsável por Junior.
    O rapaz deu de ombros e puxou uma cadeira para o meu lado, colocando o headset nos cabelos compridos que faziam com que parecesse um surfista. A cabine ficava apertada, mas eu não me importei, Junior era divertido, cheio de histórias de fora e eu acabava dando muita risada. Só tivemos um momento meio desconfortável, quando Shar apareceu pelo corredor, indo para a sala de Dona Olívia, Junior soltou um "gostosa".
- Cara, namoramos há um ano. - Eu franzi as sobrancelhas, meio incomodado, e ele sorriu, "desculpa, cara".
    Quando a minha mãe morreu, vendi nossa casa e comprei uma menor, mas bem mais próxima à empresa, nessa altura Shar já estava grávida e planejávamos que ela viesse morar comigo em breve. Ela andava mal-humorada, tinha enjoos matinais sempre e várias das roupas que gostava já não cabiam mais, mas continuava linda para mim, a melhor coisa que meu emprego me trouxera, ou talvez a segunda melhor, já que minha futura filha estava chegando. Eu já a amava mesmo sem conhecê-la e, se dependesse de mim, seguiria os passos dos pais, até que um dia a nossa família Cardozo estivesse na presidência da SegurosLife.
    Quando minha filha nasceu, eu quis registrá-la como Iracy, nome da minha mãe, mas Shar não deixou. Bateu o pé e insistiu para que fosse Olívia, como nossa chefe, e a devoção dela de certa forma me emocionou, Olívia ficou.
    Só que algo parecia estranho. Junior era muito meu amigo, foi inclusive padrinho do meu casamento, mas a frequência de suas visitas depois do nascimento da minha filha estava começando a me deixar encucado. Quando questionei Shar ela disse que era coisa da minha cabeça e desconversou, mas vi que ficou estranha. No dia seguinte, quando acordei, nem Shar e nem Olívia estavam em casa, mas não me desesperei. As vezes minha filha acordava a mãe de madrugada e Shar a levava no café 24h aqui da frente, então me arrumei e fui para o serviço. Quando abri a porta, Dona Olívia estava com os olhos vermelhos e inchados e Seu Plínio parecia desconcertado. Ela me abraçou.
- Ó, Pedro, eu sinto muito! Eu sabia que aquela menina era problema, eu sabia! - Lágrimas corriam pelos seus olhos e eu me senti como no primeiro dia de emprego, sem entender nada. - Ele voltou para a Califórnia, Pedro!
    De forma séria, Seu Plínio me levou até a minha cabine e puxou uma chorosa Dona Olívia de volta para sua sala, onde ficaram a tarde inteira fechados. Me concentrei no meu trabalho, ignorando os fatos se chocando contra a minha mente. Tudo bem que Junior pudesse ser meu melhor amigo, padrinho de casamento e também amante da minha mulher, tudo bem que a minha filha fosse, na realidade, filha dele, e isso explicasse a insistência em não pôr o nome da minha mãe, estava tudo bem, refleti enquanto mordia a bunda de um lápis com força. Pelo menos eu tinha o meu emprego, meu único emprego, meu ganha-pão. E é por isso que eu digo, depois de ser um homem sem nada, um homem que tinha tudo e um homem que tinha tudo e voltou a não ter nada: nesse momento enxergamos quem esteve conosco esse tempo todo. Graças ao meu trabalho, eu ainda tinha uma casa, eu ainda tinha comida na mesa, eu mantenho a chance de ser mais do que fui, de subir, encarar a chefia, talvez um dia fazer dos meus próprios filhos presidentes daquele lugar.
- Pedro. - Seu Plínio chamou da sala dele, e eu entrei, sentando na cadeira indicada. - Assine esses papéis, por favor. Junior determinou que só volta para o Brasil se puder criar sua filha aqui, e isso seria desconfortável com você por perto, eu sinto muito, mas preciso que o futuro presidente da minha empresa esteja aqui quando eu partir. Você está demitido.






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