sábado, 23 de fevereiro de 2019

Criando algo clichê e meloso sem ligar pra auto-crítica

    O primeiro ponto a se considerar é que nossas famílias se odiavam. Somos vizinhos e, depois de uns vinte e cinco anos anos compartilhando o mesmo corredor em um prédio pequeno e fuleiro de subúrbio, não é difícil começar a gerir sentimentos conflituantes. Afinal, é uma espécie de intimidade. Quando eu tinha catorze anos gostava de brincar de adivinhar quem da família dele estava usando o banheiro, era fácil porque todas as portas sempre rangiam muito e as pessoas tinham hábitos diferentes. Embora nos odiassem, meus vizinhos despertavam minha curiosidade, eram muito diferente de nós, família pequena e fácil de encontrar por aí, pai trabalhando fora, mãe cuidando da casa, a criança brincando solitária pela rua. Lembro nosso primeiro contato como se fosse ontem.
- Ei, boca de ferro - a rua toda me chamava assim desde que meus pais me forçaram a usar aparelho nos dentes, alegando que era em prol da minha saúde -, minha avó mandou avisar que se vocês não pararem de pendurar as roupas na janela ela vai tirar uma por uma e tacar fogo!
- Por que aquela rata velha não taca fogo em si mesma? O prédio todo agradeceria! - Retruquei, pensando se deveria levantar da sarjeta e me preparar para uma briga. Para minha surpresa, ele deu de ombros e sentou ao meu lado.
- Ela é mesmo uma rata velha. - Disse, enfim, e à partir daí começamos a sair juntos, escondidos, porque se algum parente nosso descobrisse nossa cumplicidade nós apanharíamos juntos.
    Íamos para escolas diferentes, eu ia para a escola boa do bairro, onde os alunos não levavam canivetes e, em compensação, tratavam os professores como empregados. A escola dele ficava à oito quarteirões pela rua de terra e não tinha porta nos banheiros, mas nunca ouvi ele reclamando, talvez porque a mãe dele fosse professora lá. Um dia, quando fui buscá-lo na saída, ela quase me viu e isso o fez tremer como vara verde, depois disso nunca mais passei por lá, já ele passou a me buscar na saída todos os dias, acho que ficou envergonhado da sua reação.
    Um dia, já com nossos dezoito anos, marcamos de nos encontrarmos na rua de cima, um fliperama meio falido que era a garantia de não sermos vistos por nenhuma parentada curiosa. Ele parecia nervoso, como no geral parecia, e eu nunca entendia o porquê. Fixou seus olhos com de madeira envernizada nos meus.
- Eu e você vamos assistir o pôr-do-sol na caixa d'água hoje. - Seu tom não permitia negativas e eu percebia o quão difícil pra ele estava sendo falar daquela forma, fiz que sim com a cabeça e ele sorriu, afastando-se em seguida. Não o vi até o final do dia, no local combinado, em cima da grande caixa d'água de onde dava pra ver a cidade inteira. O céu estava em uma cor bonita, tingindo tudo avermelhado, e o vento era forte na altura em que estávamos.
- Acho... acho que eu gosto de você. - Ele gaguejou e eu ri em resposta. Eu sabia, é lógico que sabia, só não conseguia entender porque ele fazia parecer tão errado. Pareceu ofendido com a minha reação.- Você não está me levando a sério!
- Não seja rabugento. Eu também gosto de você, pensei que sabia disso. - Eu achava graça na forma com que ele ficava facilmente envergonhado e em seu jeito de achar que todos os problemas, mesmo o menor deles, poderia crescer rapidamente até engoli-lo. - O que te traz tanto medo? Nossas famílias? Você já se sustenta sozinho, eu também, não precisamos deles.
    Ali, naquela caixa d'água ao pôr-do-sol, escondidos de tudo e de todos, ali foi o nosso primeiro beijo. Teve desde lágrimas até suspiros, ali eu soube que ia ficar com ele para sempre.
    Certamente nem tudo são flores. Tivemos momentos ótimos, entre viagens e encontros nas faculdades (ele escolheu Direito e eu, Turismo), acampamentos à céu aberto, todas as vezes que fugíamos para algum lugar na tentativa de encontrarmos um pouco de privacidade. Namoramos por três anos antes da família dele descobrir, parece que por alguma fofoca vinda pelos primos menores que iam ao fliperama. Foi expulso de casa. Meus pais, por sua vez, também não tiveram as melhores das reações: mamãe chorou muito e meu pai, enfurecido, só conseguia fitar a janela da rua em silêncio. Eu não sabia o que dizer para amansá-los, não considerava nada do que eu fazia um erro, pelo contrário. Para mim era como se estivessem armando um teatro, algum enredo de mentirinha, e quisessem que eu fizesse parte da mentira, um acordo subliminar em manter a ilusão de que aquilo realmente tinha alguma importância, que o certo seria cada um de nós seguir para um lado sem demonstrações de afeto, amor, nada. Só o vazio. Eu não aceitaria isso e, no dia seguinte, me mudei, sob ameaças de ter meu nome riscado no testamento.
    Eu estava perto de conseguir o diploma e ele, recém-formado, buscava emprego. Os perrengues financeiros devem ter sido os piores momentos da nossa história, e por umas três vezes achei que não passaríamos por essa, mas para onde iríamos? Só tínhamos a nós, seria sempre assim, nenhum olhar ameaçador dos vizinhos poderia tirar isso da gente. As viagens e acampamentos diminuiram, verdade, mas, depois que eu me formei e ele foi empregado, as coisas melhoraram consideravelmente. A reação dos outros é muito mais fácil de ignorar quando temos comida na mesa. Com o tempo, pudemos até voltar a viajar.
    De vez em quando eu falava em filhos. Meu parceiro, fruto de família grande e grosseira, odiava a ideia de pôr mais uma criança nesse mundo, detestava a possibilidade dela passar o que nós passamos, eu não podia culpá-lo, desisti da ideia. Com o tempo, me pareceu melhor assim. Quando a doença o alcançou, ele ainda pensava que era algum tipo de punição dos pais pelo mau-comportamento, como se sua genética fosse pautada pelo que a família pensava ou deixava de pensar. Ainda assim, nunca reclamou. Não reclamou quando o corpo aos poucos foi perdendo a força e nem quando as dores chegaram, e eu nunca entendia como ele conseguia encontrar espaço para sorrisos. Uma vez, cheguei a perguntar. Seus olhos brilharam, como se sempre tivesse esperado a chance de me responder:
- Foi você, Ulisses, só você.



(pelos deuses, haja dificuldade em escrever textos melosos viu!!!)

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