quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Murphy

Era um mico, um desses saguis que existem aos montes na cidade, mas esse resolveu ficar na nossa casa. Veja bem, nós não o prendíamos, o bando dele ia e vinha livremente, aproveitando-se ocasionalmente das frutas deixadas em uma árvore no quintal. Mas esse ficou, parecia gostar da gente, ou ao menos dos meus pais, eu era só um bebê.
Micos são rabugentos. É só você ter um convívio mínimo com eles que consegue perceber e, em mim, esse era um conhecimento já internalizado. Ele, que gosto de, hoje em dia, chamar de Murphy, invadia o cercadinho onde eu ficava (pais ocupados e bebês peraltas por vezes levam às jaulinhas). Segundo meus pais, que se lembram, eram mordidas mútuas: brigávamos, e muito. Acho que ele não gostava que eu recebesse mimos e eu não gostava que ele invadisse meu território. Uma relação comum a dois animais.
No fim, embora eu goste do fato de que o primeiro animal que brinquei na vida tenha sido um macaco, preferia que ele não tivesse passado por nós. Não estávamos preparados para recebê-lo, ou ele não estava preparado para a vida humana. Em uma das visitas do pai da minha irmã, bateu a porta sem ver que o mico vinha atrás, ficou metade pra dentro, metade pra fora. Diz que foi um desespero lá em casa, mas engana-se quem pensa que Murphy morreu, ficou um tempo meio estrupiado, sim, mas sobreviveu e, semanas depois, não se via sinais da trágica história, ele estava pronto para outra.
O problema é que "a outra" não demorou muito a chegar. Saímos de casa, todos, não sei dizer o por quê, só sei que era dia e que ninguém pretendia demorar. Murphy eu nem sei dizer se rondava por ali, por vezes chegava quando não estávamos em casa, nem sempre esperava voltarmos, naquele dia esperou. 
Parecia uma rápida troca de canal entre um filme qualquer de comédia, nós chegando em casa, o sol começando a se pôr, meu pai se espreguiçando e deitando na rede, o canal trocou e fomos para um filme de terror, tudo bem rápido. Murphy estava na rede, já sem vida a um tempo, embolado entre os fiapos de pano que caíam pelas extremidades. Até hoje me pergunto se foi rápido, se ele sofreu, ou qual o motivo dele ter ido em uma rede cuja importância nunca havia dado. Nunca vou saber, mas vou morrer buscando na memória alguma lembrança daquelas mordidas. 

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