No domingo o Aurélio foi morto pela polícia. Eu poderia suavizar as palavras, mas nunca foi do meu feitio e a realidade é essa: no domingo, último, Aurélio foi morto pela polícia. Com três tiros. Na própria casa.
É tipo mais um dos medos realizados, dos milhões desse ano (o que, acharam que não seria mais um texto sobre mim? Respeitem meu local de entendimento, por favor). Eu perdi minha mãe, perdi meu gato mais "meu", perdi uma prima, um tio de consideração, um amigo da família, meu escritor preferido, em 2025 muitas das pessoas que eu amava perderam a chance de continuar por aqui, a maioria delas sei que queria mais anos. E, domingo passado, perdi o Aurélio, um dos amigos de Matinhos que nunca questionei a amizade, alguém que vi depois de sair de lá, que fez questão de me ver. Falei com ele semana passada, sabe?
A morte da minha mãe me traz raiva, mas eu não encontro culpados. Na morte do Fora-da-Lei eu só consigo culpar a mim. Quando Iago me falou, logo depois do horário da minha terapia (também conhecido como 'horário em que tudo dá errado'), que Aurélio morreu, a primeira coisa que pensei foi "caramba, eu achava que ele tinha vencido o câncer!". E tinha, eu não estava errada. Eu lembro de, mesmo de longe, acompanhar que ele estava de cama, morrendo de dor, vivendo à base de morfina legalizada até liberarem a cirurgia que ele precisava. Liberada, ele reviveu, e nisso veio essa minha falsa segurança de que ele estava fora de perigo.
Só que eu esqueci que eu vivo no planeta Terra, país Brasil. Esqueci que ele vive em uma cidade minúscula, com forte coronelismo, num país racista quando convém (e geralmente convém).
E é isso que eu não engulo. Um cara com a história dele, com o caráter dele, vi otário no Facebook "ain porque Aurélio quando era morador de rua em 1986 (!!!) era cuzão", velho, um foda-se do tamanho do mundo, eu conheci o Aurélio do presente, o que eu gostava de falar "ah, mas tal opinião é porque você é chato, né, Aurélio (risos)" e ele levava na boa. Eu tive tanta dificuldade em me expressar e entender os outros em Matinhos, ele era uma das pessoas fáceis de entender, ele comunicava o que pensava, sem joguinho, sem tentar ofender ninguém, mas certo da sua opinião. Levou isso até o fim, um viciado em cuidar de animais (elogio dramático) que morreu tentando proteger um bicho que não era nem dele, o único que, desde que o conheço, morreu sem conseguir salvar.
A morte me dói sempre por tudo aquilo que foi tirado de quem se foi. Partida natural ou não, acho meio inevitável não pensar no quanto quem se foi gostaria de ver ou viver tal coisa. Penso nisso todo dia em relação minha mãe e, desde domingo, sobre Aurélio.
Se eu pudesse falar algo para ele, diria que a Cler e mais amigos que ele fez em Matinhos garantiram a segurança dos bichos dele. Diria que sinto muito não ter respondido todo e cada vídeo de internet mandado, mas que agradeço ter falado com ele há duas semanas. E agradeço que ele cuidou da Bolota quando, se não fosse ele, ela morreria na nossa mão, independente de qualquer boa intenção. Agradecer os jogos de xadrez e que ele nunca se incomodou com meu jeito de ser, mesmo quando eu era implicante e dava bronca, coisas que faço com gente que gosto.
Foi legal quando a gente se encontrou no MON, em Curitiba, num contexto fora de Matinhos, ele estava no tratamento, vivia sentindo dor e, embora falasse sobre isso, era sempre com um sorriso no rosto, um negócio genuíno. Acho que é a palavra que me remete ele, é uma das qualidades que mais admiro: Aurélio era genuíno.
Eu vou sentir sua falta, amigo, de verdade. Mesmo longe, era feliz de saber que compartilhava o mundo com você. Você foi arrancado de muitos de nós, não consigo nem imaginar como está a cabeça do pessoal de Matinhos que vivia contigo dia a dia. Você vai fazer muita falta, o planeta é um lugar pior agora. De novo.
Se existir algo depois da vida, espero que você esteja bem, espero que esteja se sentindo amado e acolhido. Fico pensando nos seus últimos segundos, é quase tortura, mas não consigo evitar. Você devia estar amedrontado, Aurélio, eu sinto muito, muito, que você tenha passado por isso. Se ainda estiver com a gente de alguma forma, então essa mensagem, qualquer mensagem, preciso acreditar que possa chegar até você. Senão, não importa mais, tudo se trata de, mais uma vez, engolir o luto, honrar sua memória e tentar evitar os próximos enquanto as lágrimas ainda caem.
Vai em paz, amigo, deixa a guerra com a gente. Sinto muito, de novo, pela sua forma de partir. Nunca vou te esquecer.