terça-feira, 9 de julho de 2019

Narrativas

A verdade pode até ser uma só (isso não é uma afirmação), mas são muitos os pontos de vista e, hoje e sempre, isso que define quem vai segurar a faca e o queijo.

A humanidade já passou por muitos momentos e já acreditou em muitas coisas, algumas dúvidas que pareciam superadas inclusive voltando à moda (alô terraplanismo), e eu cada vez mais penso que o que controla tudo é a narrativa, veja bem, um dia acreditamos que o rei era escolhido por Deus para ser rei, ou que mulheres eram propriedades de seus pais e maridos, ou em papos lixos de supremacia ariana, enfim, a lista de absurdos já defendidos pela humanidade e encarado como "opiniões comuns" é imensa, surpreendentemente até hoje, quando grande parte de nós já tem acesso à internet e, com ela, à maioria dos livros existentes no mundo.

Nós avançamos muito no decorrer da nossa história, ao menos em teoria, e mesmo assim estávamos muito longe do ideal, mas existia um futuro a ser vislumbrado, já entendíamos que as pessoas são diferentes entre si mas devem ter as mesmas oportunidades e que, se isso ainda não acontece, é algo a ser mudado e não elogiado.

A internet mesmo, essa linda faca de dois gumes, propiciou que muitas pessoas tivessem acesso a histórias e contextos de vida muito diferentes da própria bolha e, mesmo que nem toda a população tenha acesso, o crescimento da internet mudou a televisão, mudou o rádio, mudou o cotidiano brasileiro (provavelmente mundial) e, principalmente, jogou na roda debates que por muito tempo tentamos evitar, debates desconfortáveis, sim, mas necessários e atrasadíssimos.

Só que um fenômeno antigo também se apropriou das redes, a certeza da alienação. E então as teorias e opiniões começaram a ser mais importantes do que os fatos, novamente a narrativa, certa ou errada, se fazendo valer. Se por trás da ideia de progresso está a destruição do planeta, por que não focar apenas naquilo que queremos focar? Existe uma tendência crescente em ignorar verdade e mentira e trocar pelo "concordo" ou "não concordo". E por isso pessoas seguem defendendo suas opiniões bizarras, defendendo seus heróis mesmo que os mesmos entupam a comida da população com veneno e etc.

Se eu pudesse enfiar alguma ideia na cabeça do mundo todo seria essa: não existem heróis e não existem vilões. Mas existe a narrativa e, com ela, você consegue fazer as pessoas viverem em um estado de medo e alerta que torna fácil o controle. Nós só queremos ser dopados, ninguém aguenta mais receber a tonelada de informação diária, estamos sendo soterrados porque, assim, não reagimos, e é mais fácil lidar com isso quando tem um suposto herói para nos salvar de nós mesmos. Terceirizar o trabalho de ter uma sociedade justa, algo assim.

E aí a gente inventa um papo meritocrático, algo como "as pessoas são pobres porque não se esforçaram o suficiente", e fica fácil tirar o nosso da reta.

No último episódio de Brasil 2019, nosso vergonhoso presidente soltando uma daquelas cortinas de fumaça e defendendo trabalho infantil, mais uma narrativa que eu pensava estar consolidada, "lugar de criança é na escola", e pelo visto, não, tem muita gente, os famosos "cidadãos de bem", se prontificando em defender a narrativa de que criança pode e deve perder a infância trabalhando. Felizmente esse não é um projeto de verdade, como prometer empregos para crianças em um país onde parte gritante da população está desempregada? Ainda assim, é um absurdo que a fala tenha sido defendida, é desesperador ver pessoas que eu considerava boas e sensatas (já nem sei em quê me baseio) defendendo que o filho dos outros deixe de brincar e estudar para garantir a sobrevivência da família que, para começar, nem deveria estar passando dificuldade se vivêssemos em um mundo justo.

E a narrativa vigente é essa: se não está conosco está contra nós, é inimigo e deve ser combatido. É só observar a atual campanha para tirar o técnico da seleção, Tite, não pelo seu desempenho como técnico, mas por sua posição política que ele, pelo que entendi, nem levou ao campo. Eles defendem que isso aconteça mas acham um absurdo serem chamados de fascistas, mesmo isso deixará de ser um problema, com o tempo, o termo fascista perderá o significado e vai se tornar o mesmo que anti-comunista, porque segundo a narrativa o comunismo foi o que vivemos nos últimos tempos (o lucro dos bancos deve ter sido alucinação coletiva ou algo assim) e deve ser combativo porque o PT estragou o país e aquele papinho todo e etc.

São tempos sombrios e vem aí mais um ciclo de vários anos para resolver essa bagunça toda. Pena que a gente destrói o planeta cada dia mais e se bobear nem temos todo esse tempo. Vai depender da narrativa. No momento aquecimento global nem existe mesmo...

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