domingo, 12 de abril de 2020

Cartas

Aos meus mortos: Sou grata. Agradeço cada momento que sussurraram (ou gritaram) as respostas nos meus ouvidos, mesmo quando jurei que estava pronta para recebê-las e, surpresa!, não estava. Agradeço pela confiança eterna, pela proteção inexplicável, aquela sorte que tive por toda minha vida de estar em lugares perigosos, situações perigosas, e sair com minha integridade física inabalável. A mente, nem tanto, mas essa parte era além de vocês e, ainda assim, conseguiram me ajudar, vocês são impressionantes.
Agradeço o cafuné quando, bem novinha, chorava com a cabeça enfiada no travesseiro, hoje eu nem lembro pelo quê, só sei que doía e eu me sentia sozinha, mas me mostraram que eu não estava.
Também lembro com carinho daquele dia, naquele lugar lindo, onde todos viramos flor, inseto, grama, mar, tudo, ali eu consegui sentir algo que só raciocinava: estamos todos conectados.
Quando um homem apareceu na frente da minha casa e vocês me avisaram que ele estava armado, e contornamos a situação exatamente como faríamos com dois cachorros querendo brigar. Ou nas outras duas vezes em que coisas parecidas aconteceram e eu temi, mas vocês me ajudaram. Eu sei.
Não faltam situações. Não são coisas pontuais, é dia a dia, desde sempre. Desde o vômito e desmaio na minha primeira comunhão (não completa) até o primeiro ritual com uns sete anos, ou a situação que me tornou uma criança de dez anos com insônia e até hoje eu não entendi, mas vocês sempre estiveram por mim, mesmo quando não mereci, mesmo quando vocês me avisaram e eu, teimosa, ignorei as consequências dos meus atos, ainda assim não me abandonaram.
Mesmo com um monte de gente, sempre me senti sozinha. Mesmo sozinha, sempre me senti com vocês. Obrigada.


Aos meus vivos: Se eu não morrer pelo coronavírus (nunca sabemos) essa carta ainda vem.